Numa fase em que se começa a tornar evidente que o Euro tem debilidades inultrapassáveis, o livro “The Tragedy of the Euro” de Philipp Bagus arrisca-se a ser uma referência central na literatura que discorre não só sobre euro em particular, mas sobre União Europeia como um todo.
Bagus é um economista alemão que foi estudar para Madrid com Jesus Huerta de Soto e de quem hoje é colega de departamento na Universidade Juan Carlos. O próprio Huerta de Soto escreve no prefácio que Bagus o desafiou na sua anterior visão positiva do Euro e que este último apontou correctamente para a superior vantagem das moedas nacionais em competição em detrimento de um banco central europeu monopolista.
O livro não se limita a uma análise económica da moeda única europeia mas debruça-se igualmente sobre o contexto histórico em que ela se desenvolveu. Consequentemente, ele optou abrir a obra abordando as duas principais forças em oposição desde que o projecto da União Europeia começou. Desde o início da ideia europeia que existem duas visões para a Europa: 1) A visão liberal clássica entende o projecto europeu simplesmente como um acordo entre países europeus que permite a liberdade de movimento de pessoas, bens e capitais, gerando uma união através do mercado livre; e 2) a visão imperialista, a que ele denomina de visão socialista, implica a centralização de poder em Bruxelas, diluição das autonomias locais, harmonização legal e fiscal e um enorme estado providência ao nível europeu.
O autor revela que, tradicionalmente, a visão liberal clássica foi defendida por políticos de Estados como a Grã Bretanha, a Holanda ou a Alemanha e que a visão socialista foi essencialmente defendida pelas elites políticas francesas que procuravam um novo projecto imperial depois do vazio da perda das colónias. Franceses como Jacques Delors ou Francois Mitterrand são os nomes mais representativos da visão socialista da Europa. Isto, claro, não invalida que defensores das duas visões não possam ser encontrados em todos os países.
Desde o início da união que se tentou compatibilizar estas duas visões, aceitando-se o livre movimento de bens, capitais e pessoas mas aceitando-se igualmente as sementes centralizadoras da visão socialista como a criação de uma comissão europeia com poderes para iniciar legislação ou a política agrícola comum. Essas sementes deram origem ao voraz processo de aglutinação de poder que se verifica desde então.
Porém, até ao nascimento do Euro, os defensores da visão socialista da Europa continuavam a ter muitas dificuldades na promoção da centralização de poder e uma das principais razões era a prosperidade que a Alemanha ocidental apresentava no pós-guerra. Esta prosperidade assentava numa política monetária do Bundesbank (banco central alemão) que era genericamente independente do poder político e que mantinha as taxas de juro altas, tendo como principal função evitar a inflação e não imprimir dinheiro para fins de despesa estatal. O Marco era assim uma moeda extremamente valorizada. Os bunderbankerstinham aprendido a lição da hiperinflação da república de Weimar.
Os políticos franceses viam no Bundesbank um travão às suas necessidades de financiarem projectos estatais através da desvalorização da moeda francesa, pois qualquer política monetária expansionista (impressão de dinheiro) por parte dos franceses significava uma moeda muito mais fraca do que o Marco alemão, coisa que feria seriamente o orgulho francês e expunha rapidamente as más políticas do banco central gaulês ao serviço do seu governo. Desta forma, a competição entre moedas impedia que países (como a França) pudessem monetizar a sua dívida sem restrições. Sem surpresa, foram os políticos franceses a pressionarem a Alemanha para entrar na moeda única e acabar com a disciplina do Bundesbank. Depois de muitos lobbies políticos, o Euro foi introduzido e revelou-se, como esperado, uma moeda não só mais fraca que o Marco alemão mas também claramente expansionista e ao serviço da despesa governamental.
Mas porque é que os políticos alemães aceitaram trocar o Marco pelo Euro? Em larga medida porque esse foi o preço que os franceses pediram para permitirem a reunificação alemã. Tal como o ex presidente alemão Richard von Weizsäcker disse, a aceitação do Euro será ““nothing else than the price of the reunification” (p.52). Como razões adicionais, Bagus salienta a pressão dos bancos e indústrias exportadoras alemães que pressionaram no sentido de se livrarem da rigidez monetária do Bundesbank. Já com o Euro introduzido, estes puderam finalmente usar o crédito barato e a moeda desvalorizada para os seus fins. Isto claro, à revelia do povo alemão, que esmagadoramente preferia manter o Marco. Porém, como é típico em todo o processo da União Europeia, nada lhes foi perguntado em referendo.
Com a introdução do Euro, as taxas de juro que cada Estado tinha de pagar para se endividar baixaram consideravelmente pois não havia já o perigo de desvalorização unilateral da moeda e igualmente porque os investidores acreditaram desde o início que qualquer problema de liquidez estatal seria resolvido através de “ajudas” da União Europeia. Isto foi especialmente verdade para os países que estavam tradicionalmente endividados e que recorriam a desvalorizações de moeda constantes (o sul da Europa). Agora sim, era possível a estes Estados endividarem-se “ad aeternum” a baixo custo e foi isso que fizeram desde então. Alguns políticos alemães, ao anteverem este processo, pediram sanções automáticas e imediatas para países que excedessem o limite do défice anual (3% do PIB). Tal nunca foi aprovado pois nenhum Estado se queria auto-limitar na sua capacidade para contrair dívida.
Desde a introdução do euro que os governos de cada país têm a capacidade para indirectamente “imprimir” dinheiro. Isto é feito através da emissão de dívida pública, vendendo-a a bancos que aceitam comprar essa dívida. Estes últimos querem comprar dívida pública essencialmente porque o banco central europeu aceita emprestar-lhes dinheiro (imprimido) se estes tiverem títulos de dívida pública em seu poder (usando-os como colateral). Assim sendo, vender dívida pública significa em boa parte receber empréstimos da impressora monetária que é o Banco Central Europeu.
Chega-se assim à ideia central do livro de Philipp Bagus: o Euro é uma “tragédia dos comuns”. Sabendo-se que os primeiros a receberem o dinheiro impresso pelo BCE podem gastá-lo com proveito antes da inflação os atingir, todos os Estados têm incentivos para se endividarem o mais depressa que puderem, pois se não o fizerem serão apenas os receptores da inflação causada pelos que têm acesso ao dinheiro primeiro. Naturalmente que os países com economias mais débeis (Portugal, Grécia...) foram os que mais correram para o BCE nos últimos 11 anos, sob pressão eleitoral e com a impopularidade de subir impostos, emitir dívida pública foi a única solução que os políticos destes países encontraram para vencerem eleições.
Desta forma, os políticos locais injectaram crédito no seu país e passaram a inflação para os outros. Como o último a chegar ao crédito torna-se exclusivamente num receptor de inflação, vão todos correr para obtenção desse crédito o mais depressa possível. Da mesma forma, os bancos não têm medo de emprestar a Estados falidos porque contam com a protecção dos Estados e dos bailouts da UE na defesa do Euro. Todos estes agentes políticos e económicos podem assim ser irresponsáveis à discrição e em última instância, se algo correr mal, pedem mais impressão de dinheiro ao BCE. Consequentemente, esta expansão de crédito leva a bolhas imobiliárias (Espanha, Irlanda) ou a improdutividade/destruição da estrutura produtiva (como Portugal e Grécia). O único travão para esta tragédia dos comuns é a perspectiva de hiperinflação ao nível europeu; este é um cenário que esteve já mais longe, visto que o BCE, na tentativa de salvar o euro, está já a partir de 2010 a comprar dívida pública dos Estados insolventes, numa clara demonstração que não é independente e que está ao serviço dos interesses políticos.
Outro problema central do Euro é a sua falta de adequação à produtividade dos PIIGS, como é o caso de Portugal ou da Grécia. Estes países entraram no Euro vindos de moedas consideravelmente mais fracas, o que os tornou desde então pouco competitivos. Para resolver este problema os governos usaram o “bónus” do crédito fácil do Euro para se endividarem e subsidiarem o desemprego, seja através do subsídio directo, seja através de reformas antecipadas ou através de criação de empregos no sector público. No entanto, Bagus salienta que o Euro não é um desastre porque os países têm diferentes estruturas produtivas, mas sim porque permite a redistribuição de crédito a favor dos países que se endividarem mais depressa, ou seja, estes últimos deixam de ter incentivos para adoptarem políticas de livre mercado internamente. Ademais, o autor lembra igualmente que problema não é tanto a moeda única (o ouro também já serviu esse propósito), mas sim o aproveitamento político e a captura do BCE pelas autoridades políticas europeias.
A título exemplificativo, Bagus ilustra as 3 fases distintas de redistribuição da União Europeia até chegar ao ponto actual: A primeira fase foi a redistribuição dos fundos estruturais e da PAC, a segunda fase foi a redistribuição de crédito via BCE e bancos comerciais e a terceira fase é a redistribuição directa através dos bailouts e da compra directa de dívida pública pelo BCE. Estas fases podem ser entendidas como um premeditado processo de integração europeia que irá centralizar toda a política económica em Bruxelas, com inúmeras consequências nocivas para as autonomias locais.
No entanto, Philipp Bagus fecha o livro apresentando igualmente 3 possibilidades para o futuro do Euro: Na 1ª hipótese o sistema colapsa devido a um ou mais países acharem mais vantajoso sair do euro e entrar em default ou porque a própria Alemanha sai do euro antes que a sua dívida pública passe a reflectir os encargos de toda a Europa. Na 2ª, os castigos da UE aos países com excessos no défice passariam a tornar-se efectivos e tal implicaria, mais tarde ou mais cedo, a expulsão de países incumpridores, o que levaria ao fim do Euro. Já na 3ª hipótese, os países ricos continuam a pagar pelos países mais pobres e eventualmente chegar-se-á à hiperinflação.
Parece assim claro que o Euro só terá futuro se se alienar a autonomia económica dos Estados nações para a entregar a Bruxelas, mas tal, a médio/longo prazo, teria custos enormes. O que se deve retirar do livro do Philipp Bagus é que apesar de ele ser idealmente a favor do ouro como mediador monetário e não de dinheiro produzido por bancos centrais (fiat money), as vantagens de limitação de poder político que as moedas nacionais em competição apresentam são incomparavelmente superiores ao que o Euro oferece. Consequentemente, conclui-se que este projecto monetário deve ser revertido e que os países devem reaver o controlo não só das suas moedas, mas acima de tudo reaver as suas autonomias.
Em suma, usando as tipologias do autor, esta será a única forma de evitar a concretização da visão socialista da Europa e permitir a concretização da visão liberal clássica.
Originalmente publicado no "O Insurgente"