O REPLICADOR

Janeiro 21 2010

 

 O populismo

 

O que é o populismo? Apesar da dificuldade de caracterização do conceito, o populismo é visto como uma patologia da democracia por boa parte da imprensa e comentadores diversos. Em linhas gerais, este pode ser definido como a promessa da devolução de poder ao povo por oposição aos interesses das elites governativas do status quo. Contudo, esta patologia supracitada não é uma patologia da democracia em si mesma mas sim da democracia representativa definida pelas teorias realistas/elitistas da democracia (Schumpeter, Ostrogorsky, Michels, Mosca) que consideram que, numa democracia representativa, o povo deve restringir-se à escolha do governante e pouco mais; consequentemente, quando surge um agente político a pedir mais poder popular, estes proponentes consideram que há um overload no sistema. Da mesma forma, o que este tão criticado fenómeno do populismo faz é explorar as falhas da democracia representativa reivindicando o empowerment popular, rejeitando clivagens sociais ou políticas (esquerda/direita) e definindo o povo através de uma identidade unitária. 

 

O fortalecimento do pilar constitucional nas democracias

 

Depois da má experiência de democracia popular da república de Weimar que originou a segunda guerra mundial, as democracias ocidentais viraram-se para o fortalecimento do pilar constitucional em detrimento do pilar popular,  com especial incidência para a separação de poderes (checks and balances), para as autonomias dos bancos centrais, para a institucionalização de sistemas de direitos humanos e para os tribunais constitucionais. Com esta autonomização institucional das democracias contemporâneas o elemento da autodeterminação popular deixou de ser o foco principal da democracia para ser apenas mais um elemento da mesma. Será esta impotência, esta ausência de poder popular, que os agentes populistas irão capitalizar sempre que existir descontentamento popular. Paradoxalmente, numa altura onde existem mais democracias no mundo do que alguma vez existiram, o descontentamento com a classe política e o respectivo desinteresse crescente revelam uma desilusão em relação às capacidades dos sistemas democráticos para cumprirem com a sua função de representação popular.

 

A erosão dos partidos e o surgimento do pilar populista

 

O cientista político Peter Mair considera que à medida que o pilar constitucional se vai reforçando o pilar popular (de partidos) vai sendo substituído pelo pilar populista (sem partidos).  O pilar popular baseia-se na representação popular através dos partidos, onde as várias vontades populares, organizadas em partidos com ideologias definidas, competem pela representação governamental. O pilar populista representa a erosão dos partidos, o respectivo esvaziamento ideológico, a sua transformação em agências burocráticas de acesso a cargos governamentais e a sua direcção personalista de cima para baixo onde os líderes dos partidos usam a retórica populista para angariar votos, personificar o partido através de uma voz única e assim suportarem a estrutura partidária. O exemplo mais evidente deste processo de passagem da democracia popular para a democracia populista  é o New Labour de Tony Blair.

 

O  modelo populista do New Labour

 

Quando chegou ao poder em 1997, o New Labour de Tony Blair lançou a devolution, que assumiu o carácter de revolução constitucional. Esta baseava-se numa massiva descentralização e autonomia regional que criaram o parlamento escocês e as assembleias do País de Gales e da Irlanda do Norte. Incorporou ainda a convenção europeia dos direitos humanos na lei britânica, criaram-se sistemas proporcionais nos parlamentos regionais, introduziu a eleição directa do mayor de Londres e aboliu votos hereditários na Câmara dos Lordes; como consequência, o parlamento de Westminster sofreu uma importante restrição na sua soberania. A 3ª via de Anthony Giddens (que se baseia na inescapável compatibilização entre capitalismo e socialismo) foi usada por Tony Blair para tentar acabar com a noção de esquerda e direita procurando unir o povo e a nação num único objectivo para o qual não há alternativa. O objectivo seria o de centrar o diálogo entre o “eu” personalista do político carismático e o povo, sem clivagens e sem intermediários.

 

Populismo como modelo para a União Europeia

 

À medida que vai entregando (uma aparente) autonomia às regiões, o acesso ao poder central vai ficando cada vez mais distante do cidadão devido à erosão dos partidos como entidades representativas. Este modelo populista lançado por Tony Blair será em larga medida o modelo colocado em curso pela União Europeia no seu processo de integração. Este irá basear-se na democracia populista e no constitucionalismo tornando-se evidente que os partidos terão muita dificuldade em funcionar ao nível da integração europeia. Também aqui veremos uma Europa das regiões com autonomia mas onde o processo de decisão central é afastado dos cidadãos, facto patente no funcionalismo utilizado para a construção europeia e na aversão à consulta popular quando esta contraria os interesses das elites europeias.

 

Democracias em piloto automático

 

O crescente foco populista em personalidades carismática denotam a tentativa de disfarçar o que vai sendo cada vez mais evidente: as democracias ocidentais estão em regime de piloto automático constitucional e elitista. O populismo deixou de ser essencialmente uma arma de protesto contra o sistema (que até tinha a vantagem de servir para romper carteis partidários) para ser a própria arma ao serviço do elitismo governamental através de um constitucionalismo autónomo. Ademais, a União Europeia usa uma retórica que  não raras vezes é identificada com o populismo da extrema direita, negando clivagens ideológicas e enfatizando, em formato de subtexto, o povo (europeu) e a nação unitária (os almejados Estados Unidos da Europa), sendo o passo seguinte a escolha de políticos sedutores capazes de mobilizar as massas.

 

Ausência de escolha

 

 

Patentemente, os partidos contemporâneos perderam a sua capacidade de representação popular. A integração europeia retirarou-lhes margem de manobra para representarem as vontades dos cidadãos. Ideologicamente, as ofertas partidárias são em quase tudo semelhantes, precisando de se diferenciar e de capitalizar os votos através do personalismo dos candidatos por já não se conseguirem destacar pelos programas que propõem, ou seja, os indivíduos deixam de ter escolha programática efectiva.

 

Em suma,  este fenómeno colocaria em causa a qualidade da democracia se esta fosse um conceito estanque, como não é, qualifica-se apenas como mais uma variante da mesma; porém, permitam-me dizer que sem escolha não há real democracia; resta saber que escolha é possível ter em democracia. 

 

publicado por Filipe Faria às 17:32

Mais um magnífico post, sr. Filipe Faria! Claro, conciso e incisivo, como defende o Popper naquela frase. Quer-me parecer que nunca estivemos numa época tão perigosa como esta, em que as armas que dantes eram usadas para fazer frente aos autoritarismos são agora aproveitadas extensivamente pela vile maxim of mankind, de que já o nosso Adam Smith falava. Duvido que o futuro político nos traga algo de bom, a menos que aconteça algum cataclismo - e mesmo nesse caso será difícil. Mas parece-me também que falta qualquer coisa a esta exposição toda: é óptimo que explique claramente às pessoas como o mundo é, mas tem de se ir para além disso: é preciso propor medidas práticas e concretizáveis para saltar os obstáculos. Claro que no caso da política será difícil, dada a dimensão da máquina em que estamos metidos. Mas não haverá qualquer coisa que possamos fazer (para além de ler este blogue, claro!), ao nível local, para contrariar as tiranias que possam para aí surgir?
Daniel a 21 de Janeiro de 2010 às 18:33

Caro Daniel

Antes de mais obrigado pelo elogio na linha popperiana.

Em relação às propostas, tal como referiste, Portugal está envolvido numa “máquina” de enorme dimensão e não é simples emitir soluções que não sejam consideradas como estarem no limiar do revolucionário. Para além do mais, muitos não vêem qualquer problema no rumo que se avista.

A verdade é que no caso da integração europeia Portugal praticamente não tem já margem de manobra. Mais de 70% das nossas leis estão já pré-determinadas por Bruxelas e nós só as votamos marginalmente através de um parlamento europeu com pouco poder e através do nosso governo que tem uma representação cada vez menor no conselho de ministros. Se adicionarmos a isso a reduzida dimensão representativa do país na UE, percebemos que a vontade popular cá do burgo conta muito pouco.

Desenvolvemo-nos em muitos sectores através dos subsídios da União Europeia e ainda hoje beneficiamos a muitos níveis dessa prática. Porém, não há almoços grátis, o preço que se paga é o afastamento do poder de decisão popular. Mesmo que os nossos partidos nos quisessem representar (que claramente não querem), o grau de dependência da nossa economia perante a UE inviabiliza qualquer dissidência das políticas das elites europeias.

Claro que podemos sempre lançar gritos revolucionários, sair da UE e reivindicar uma verdadeira democracia representativa em Portugal, isto acontece regulamente no Reino Unido, mas Portugal não está na mesma situação do Reino Unido. Enquanto o RU comercializa sensivelmente 50% dos seus produtos com a UE, Portugal ultrapassa os 80%, ou seja, juntamente com uma moeda própria e as centenas de opt outs das directivas comunitárias, o Reino Unido tem margem de manobra para ponderar seriamente sair da UE sem consequências gravosas para a sua economia. Já o Estado português sofre do mesmo mal que os seus habitantes: dependência.

Perguntas-me o que podemos fazer. Bem, sem qualquer pretensão de ser um oráculo, até porque por vezes nem sei o que devo almoçar, penso que antes de mais seria importante que as pessoas se apercebessem deste processo de transferência de poder através de 2 vias: a educação (independente e não-estatal para não ser uma extensão das vontades governamentais) e o debate intenso na imprensa (à semelhança do que se passa no Reino Unido). Este gatilhos precisam de ser puxados pela sociedade civil de forma a que seja politicamente rentável para os nossos políticos assumirem posições de representação mais próximas dos temas em debate. A avaliar pela Suíça (que é dos países economicamente mais liberais na Europa), o recurso a elementos de democracia directa (como referendos) em questões de poder central e não apenas regional ajudam a manter o Estado fora da vida do cidadão. Mesmo sendo vista como uma faca de 2 gumes, ter mais democracia directa e menos democracia representativa não deve ser uma hipótese a colocar de lado.
Filipe Faria a 22 de Janeiro de 2010 às 02:45

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